25 janeiro 2007

UM NOTÁVEL CONTRIBUTO

Por não ser jornal de generalizada divulgação transcrevo, devido ao seu manifesto interesse histórico, parte de um extenso Ensaio do insuspeito Professor Vitorino Magalhães Godinho cujos argumentos, dizendo respeito na parte final aqui transcrita ao genocídio arménio, se aplicam a outras histórias bem conhecidas ("Jornal de Letras" 17-30 de Janeiro de 2007, p. 36):
Encontrarmo-nos com nós próprios. Antes de mais, sabermos situar-nos no nosso tempo, sem medo de enfrentar a realidade. Mas para isso não se dispensa perscrutarmos os tempos de outrora, excluída qualquer estulta pretensão de os revivermos. E com a intenção bem firme de com as nossas mãos fabricarmos o porvir, segundo os valores que seremos capazes de inventar ou que da herança recebida achamos que devem ser preservados. Mas não se nos pede só compreensão e imaginação, mas ainda dedicação cívica e o assumir da globalidade do nosso património e ser colectivo ao longo dos séculos em que se forjou. Falava-se no orgulho do nosso passado - um dos vectores da República. No entanto, a conflitualidade das descolonizações impeliu os povos que se libertavam a denegrir toda a obra dos colonizadores, e nestes a má consciência levou à auto-flagelação. Assistiu-se ao caricato espectáculo de Estados, e até da Igreja, a pedirem perdão por terem sido esclavagistas no século XVI ou XVIII e não ousarem assumir essa prática pretérita da escravatura. Como se a responsabilidade fosse hereditária - genes culturais? - e a violência, tanta vez atroz, não estivesse enraizada nesses continentes antes de lá chegarem os europeus e não se desencadeasse de novo depois da independência, anos e anos a fio, com absurda destruição dos equipamentos que a potência dominante instalou.
Poderíamos dizer que ao assumirmos o complexo processo de identidade se nos deparam duas actitudes. Por um lado, cidadãos, abraçamos passado, presente e aspiração ao porvir não só pela razão mas na vivência de sentimentos e maneiras de agir nem sempre coerentes. Sentimos orgulho pelo esplendor da gesta do nosso povo, sentimos vergonha pelos crimes que cometeu. Mal vai porém quando queremos apagar essa recordação de culpa, e a transferirmos para os outros. Por outro lado, a História estuda cientificamente o que somos e o que fomos, o historiador tem a estrita obrigação de isenção, mas a investigação que cientificamente conduz não é um processo em tribunal - não há condenações nem absolvições. Convém que a História, processo científico, e a forma de estar e agir na vida segundo múltiplos vectores, se conjuguem, sem que aquela esteja sujeita a imposições extrínsecas, sem que esta procure escapar à verdade histórica.
Assistimos a estranhas confusões. Um Estado que acerbamente rejeita um genocídio cometido gerações atrás, e persegue os que respeitam a realidade dos factos. Um outro cujo Parlamento aprova uma lei de repressão contra os que teimam naquela negação - como se um órgão de soberania (para mais de um país estrangeiro) pudesse ter poderes para decidir de factos históricos.

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1 Comments:

Blogger Diogo Canavarro said...

Bravo, bravo!
Destaco especialmente a parte da auto-flagelação, responsável pela decadência das mentalidades "modernas", tão modernas que nem sabem olhar para o passado com serenidade!

Abraço.

quinta-feira, 25 janeiro, 2007  

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